ANO B
27º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Tema do 27º Domingo do Tempo Comum
As leituras do 27º Domingo do Tempo
Comum apresentam, como tema principal, o projeto ideal de Deus para o homem e
para a mulher: formar uma comunidade de amor, estável e indissolúvel, que os
ajude mutuamente a realizarem-se e a serem felizes. Esse amor, feito doação e
entrega, será para o mundo um reflexo do amor de Deus.
A primeira leitura diz-nos que Deus
criou o homem e a mulher para se completarem, para se ajudarem, para se amarem.
Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma só
carne” implica viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro,
partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que
qualquer outro vínculo.
No Evangelho, Jesus, confrontado
com a Lei judaica do divórcio, reafirma o projeto ideal de Deus para o homem e
para a mulher: eles foram chamados a formar uma comunidade estável e
indissolúvel de amor, de partilha e de doação. A separação não está prevista no
projeto ideal de Deus, pois Deus não considera um amor que não seja total e
duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o
projeto primordial de Deus para o homem e para a mulher.
A segunda leitura lembra-nos a
“qualidade” do amor de Deus pelos homens… Deus amou de tal forma os homens que
enviou ao mundo o seu Filho único “em proveito de todos”. Jesus, o Filho,
solidarizou-Se com os homens, partilhou a debilidade dos homens e, cumprindo o
projeto do Pai, aceitou morrer na cruz para dizer aos homens que a vida
verdadeira está no amor que se dá até às últimas consequências. Ligando o texto
da Carta aos Hebreus com o tema principal da liturgia deste domingo, podemos
dizer que o casal cristão deve testemunhar, com a sua doação sem limites e com
a sua entrega total, o amor de Deus pela humanidade.
LEITURA I – Gn 2,18-24
Leitura do Livro do Génesis
Disse o Senhor Deus:
«Não é bom que o homem esteja só:
vou dar-lhe uma auxiliar semelhante
a ele».
Então o Senhor Deus, depois de ter
formado da terra
todos os animais do campo e todas
as aves do céu,
conduziu-os até junto do homem,
para ver como ele os chamaria,
a fim de que todos os seres vivos
fossem conhecidos
pelo nome que o homem lhes desse.
O homem chamou pelos seus nomes
todos os animais domésticos, todas
as aves do céu
e todos os animais do campo.
Mas não encontrou uma auxiliar
semelhante a ele.
Então o Senhor Deus fez descer
sobre o homem
um sono profundo
e, enquanto ele dormia, tirou-lhe
uma costela,
fazendo crescer a carne em seu
lugar.
Da costela do homem o Senhor Deus
formou a mulher
e apresentou-a ao homem.
Ao vê-la, o homem exclamou:
«Esta é realmente osso dos meus
ossos e a minha carne.
Chamar-se-á mulher, porque foi
tirada do homem».
Por isso, o homem deixará pai e
mãe,
para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne.
AMBIENTE
O texto de Gn 2,4b-3,24 – conhecido
como relato jahwista da criação – é, de acordo com a maioria dos comentadores,
um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei
Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, colorido, pitoresco. Parece ser
obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas,
coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma
reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A
finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que
ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da
vida e do homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e
não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da
vida.
Para apresentar essa catequese aos
homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas utilizaram elementos simbólicos e
literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação do homem “do
pó da terra” é um elemento que aparece sempre nos mitos de origem
mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os símbolos retirados das
narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo enquadramento, uma nova
interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel. Ou seja: a
linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação
apresentam paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona do
Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo o ensinamento sobre
Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projeto de Deus – são muito
diferentes.
O texto que nos é hoje proposto
como primeira leitura situa-nos no “jardim do Éden”, um espaço ideal onde Deus
colocou o homem que criou, um ambiente de felicidade material onde todas as
exigências da vida humana estavam satisfeitas. É um lugar de água abundante e
com muitas árvores (para quem sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido,
o ideia de felicidade seria um lugar com muita água, um clima de frescura, um
ambiente de árvores e de verdura abundante). O homem tinha, então, tudo para
ser feliz? Ainda não. Na perspectiva do catequista jahwista, o homem não estava
plenamente realizado, pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a
felicidade. O homem não foi criado para viver sozinho, mas para viver em
relação. É esse problema que Deus, com solicitude e amor, vai resolver…
MENSAGEM
Depois de criar o homem e de o
colocar no “jardim” da felicidade, Deus constatou a solidão do homem e quis
dar-lhe solução. Como?
Num primeiro momento, Deus fez
desfilar diante do homem “todos os animais do campo e todas as aves do céu”, a
fim de que o homem os chamasse “pelos seus nomes” (vers. 19). Segundo as ideias
vigentes no Médio Oriente antigo, o fato de “dar um nome” era, antes de mais,
um ato de domínio e de posse. Por outro lado, o fato de Deus ter trazido os
animais para que o homem lhes desse um nome era, na perspectiva do catequista
jahwista, o reconhecimento por parte de Deus da autonomia do homem e a
associação do homem à obra criadora e ordenadora de Deus. A autoridade sobre os
outros seres criados e a associação do homem à obra criadora de Deus responderá
ao desejo de felicidade completa que o homem sente e resolverá o problema da
sua solidão? Não. O homem não encontrou, nesse mundo animal que Deus lhe
confiou, “uma auxiliar semelhante a ele” (vers. 20). Por muito rico e
desafiador que fosse esse mundo novo que lhe foi apresentado, o homem não
encontrou aí a ajuda e o complemento que esperava. Para que o homem se realize
completamente, Deus vai intervir de novo.
A nova ação de Deus começa com um
“sono profundo” do homem. Depois, Deus, atuando como um hábil cirurgião, tirou
parte do corpo do homem (o texto fala da “zela'“, que se tem traduzido como
“costela”; contudo, a palavra pode significar “lado” ou “costado”) e com ela
fez a mulher (vers. 21-22). Porquê o “sono profundo” do homem”? Porque, de
acordo com a concepção do autor jahwista, criar era segredo de Deus e o homem
não podia testemunhar esse momento solene e misterioso; restava-lhe admirar a
criação de Deus e adorá-l’O pelas suas obras admiráveis… Depois de ter
“construído” a mulher, Jahwéh acompanha-a à presença do homem. A mulher é aqui
apresentada como uma noiva conduzida à presença do noivo e Deus como o
“padrinho” desse noivado. O homem, desperto do “sono profundo”, acolhe a mulher
com um grito de alegria e reconhece-a como a companhia que lhe fazia falta, o
seu complemento, o seu outro eu: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne
da minha carne” (vers. 23a). O homem (vers. 23b) dá à sua companheira o nome de
“mulher” (em hebraico: 'ishah) porque foi tirada do homem (em hebraico: 'ish).
A proximidade das duas palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher,
a sua igualdade fundamental em dignidade, a sua complementaridade, o seu
parentesco.
O nosso texto termina com um
comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da mulher, mas do catequista
jahwista: “por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os
dois serão uma só carne” (vers. 24). Este comentário pretende ser a resposta a
uma questão bem concreta: de onde vem essa força poderosa que é o amor e que é
mais forte do que o vínculo que nos liga aos próprios pais? Para o catequista
jahwista, o amor vem de Deus, que fez o homem e a mulher de uma só carne; por
isso, homem e mulher buscam essa unidade e estão destinados, fatalmente, a
viver em comunhão um com o outro.
ATUALIZAÇÃO
• “Não é bom que o homem esteja
só”. Estas palavras, postas pelo autor jahwista na boca de Deus, sugerem que a
realização plena do homem acontece na relação e não na solidão. O homem que
vive fechado em si próprio, que escolhe percorrer caminhos de egoísmo e de
auto-suficiência, que recusa o diálogo e a comunhão com aqueles que caminham a
seu lado, que tem o coração fechado ao amor e à partilha, é um homem
profundamente infeliz, que nunca conhecerá a felicidade plena. Por vezes a
preocupação com o dinheiro, com a realização profissional, com o estatuto
social, com o êxito levam os homens a prescindir do amor, a renunciar à
família, a não ter tempo para os amigos… E um dia, depois de terem acumulado
muito dinheiro ou de terem chegado à presidência da empresa, constatam que
estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A Palavra de Deus que nos é
hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do homem é o amor; a solidão,
mesmo quando compensada pela abundância de bens materiais, é um caminho de
infelicidade.
• Por vezes, certos círculos
religiosos mais fechados desvalorizam o amor humano, consideram o casamento
como um estado inferior de realização da vocação cristã e vêem na sexualidade
algo de pecaminoso. Não é esta a perspectiva que a Palavra de Deus nos
apresenta… No nosso texto, o amor aparece como algo que está, desde sempre,
inscrito no projeto de Deus e que é querido por Deus. Deus criou o homem e a
mulher para se ajudarem mutuamente e para partilharem, no amor, as suas vidas.
É no amor e não na solidão que o homem encontra a sua realização plena e o
sentido para a sua existência.
• Homem e mulher são, de acordo com
o nosso texto, iguais em dignidade. Eles são “da mesma carne”, em igualdade de
ser, partícipes do mesmo destino; completam-se um ao outro e ajudam-se
mutuamente a atingir a realização. São, portanto, iguais em dignidade. Esta realidade
exige que homem e mulher se respeitem absolutamente um ao outro; e exclui,
naturalmente, qualquer atitude que signifique dominação, escravidão,
prepotência, uso egoísta do outro.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127
(128)
Refrão: O Senhor nos abençoe em
toda a nossa vida.
Feliz de ti que temes o Senhor
e andas nos seus caminhos.
Comerás do trabalho das tuas mãos,
serás feliz e tudo te correrá bem.
Tua esposa será como videira
fecunda
no íntimo do teu lar;
teus filhos como ramos de oliveira,
ao redor da tua mesa.
Assim será abençoado o homem que
teme o Senhor.
De Sião o Senhor te abençoe:
vejas a prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida;
e possas ver os filhos dos teus
filhos. Paz a Israel.
LEITURA II – Heb 2,9-11
Leitura da Epístola aos hebreus
Irmãos:
Jesus, que, por um pouco, foi
inferior aos Anjos,
vemo-l’O agora coroado de glória e
de honra
por causa da morte que sofreu,
pois era necessário que, pela graça
de Deus,
experimentasse a morte em proveito
de todos.
Convinha, na verdade, que Deus,
origem e fim de todas as coisas,
querendo conduzir muitos filhos
para a sua glória,
levasse à glória perfeita, pelo
sofrimento,
o Autor da salvação.
Pois Aquele que santifica e os que
são santificados
procedam todos de um só.
Por isso não Se envergonha de lhes
chamar irmãos.
AMBIENTE
A Carta aos Hebreus é um sermão de
um autor cristão anónimo, provavelmente elaborado nos anos que antecederam a
destruição do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs
não identificadas (o título “aos hebreus” foi-lhe colado posteriormente e
provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos
“sacrifícios” que a obra apresenta). Trata-se, em qualquer caso, de comunidades
cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que vivem num ambiente
hostil à fé… Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo
Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de
certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O
objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso
cristão e levar os crentes a crescer na fé.
A Carta aos Hebreus apresenta –
recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote
por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são
inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na
sequência, para refletir nas implicações desse fato: postos em relação com o
Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é
a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor,
de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um
aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência
de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.
O texto que nos é proposto está
incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb 1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e
repete aquilo que a catequese primitiva afirmava sobre o mistério de Cristo: a
sua incarnação, a sua paixão e morte, a sua glorificação pela ressurreição. Ao
longo destes dois capítulos, o autor vai afirmando a superioridade de Jesus em
relação a todas as criaturas, nomeadamente em relação aos anjos.
MENSAGEM
Jesus aceitou despojar-se das suas
prerrogativas divinas e fazer-se “por um pouco, inferior aos anjos” a fim de
que, pelo dom da sua vida até à morte, se cumprisse o projeto salvador do Pai
para os homens (vers. 9).
Depois desta afirmação de
princípio, o autor da Carta aos Hebreus vai aprofundar a sua reflexão e
explicar porque é que Jesus teve que passar pela humilhação da cruz (a
explicação é bem mais longa do que a leitura que nos é proposta e vai do
versículo 10 ao versículo 18).
A questão da paixão e morte de
Cristo era uma “conveniência” do projeto de salvação que Deus tinha para o
homem (“convinha” – vers. 10). O que é que isso significa? O objetivo de Deus
é que o homem cresça até chegar à vida plena. Ora, para fazer com que a
humanidade atinja esse fim, Deus deu-lhe um guia – Jesus Cristo. Ele devia
mostrar, com a sua vida e o seu exemplo, que se chega à plenitude da vida
cumprindo integralmente a vontade do Pai e fazendo da existência um dom de amor
aos irmãos. A cruz foi a expressão máxima e total dessa vida de entrega aos
desígnios de Deus e de doação aos irmãos. Morrendo por amor, Jesus ensinou aos
homens como é que eles devem viver, qual o caminho que eles devem percorrer, a
fim de chegarem à plenitude da vida, à felicidade sem fim; morrendo por amor e
ressuscitando logo a seguir para a vida plena, Jesus libertou os homens do medo
paralisante da morte e mostrou-lhes que a morte não é o fim da linha para quem
vive na entrega a Deus e na doação aos irmãos.
Ao assumir a natureza humana, ao
fazer-Se solidário com os homens, ao fazer-Se irmão dos homens, Cristo (Aquele
que santifica) inseriu os homens (os que são santificados) na órbita de Deus e
mostrou-lhes o caminho a seguir para integrar a família de Deus (vers. 11).
ATUALIZAÇÃO
• A incarnação, paixão e morte de
Jesus atestam, antes de mais, o incrível amor de Deus pelos homens. É o amor de
alguém que enviou o próprio Filho para fazer da sua vida um dom, até à morte na
cruz, a fim de mostrar aos homens o caminho da vida plena e definitiva.
Trata-se de uma realidade que a Palavra de Deus nos recorda cada domingo; e
trata-se de uma realidade que não deve cessar de nos espantar e de nos levar à
gratidão e ao amor.
• A atitude de aceitação
incondicional do projeto do Pai assumida por Cristo contrasta com o egoísmo e
a auto-suficiência de Adão face às propostas de Deus. A obediência de Cristo
trouxe vida plena ao homem; a desobediência de Adão trouxe sofrimento e morte à
humanidade. O exemplo de Cristo convida-nos a viver na escuta atenta e na
obediência radical às propostas de Deus: esse caminho é gerador de vida
verdadeira. Quando o homem prescinde de Deus e das suas propostas e decide que
é ele quem define o caminho a seguir, fatalmente resvala para projetos de
ambição, de orgulho, de injustiça, de morte; quando o homem escuta e acolhe os
desafios de Deus, aprende a amar, a partilhar, a servir, a perdoar e torna-se
uma fonte de bênção para todos aqueles que caminham ao seu lado.
• Jesus fez-Se homem, enfrentou a
condição de debilidade dos homens e morreu na cruz. No entanto, a sua
glorificação mostrou que a morte não é o final do caminho para quem faz da vida
uma escuta atenta dos planos de Deus e uma doação de amor aos irmãos. Dessa
forma, Ele libertou os homens do medo da morte. Agora, podemos enfrentar a
injustiça, a opressão, as forças do mal que oprimem os homens, sem medo de
morrer: sabemos que quem vive como Jesus não fica prisioneiro da morte, mas
está destinado à vida verdadeira e eterna.
ALELUIA – 1 Jo 4,12
Aleluia. Aleluia.
Se nos amamos uns aos outros, Deus
permanece em nós
e o seu amor em nós é perfeito.
EVANGELHO – Mc 10,2-16
Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo segundo São Marcos
Naquele tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns
fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua
mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um
certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso
coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, ‘Deus
fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe
para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne’.
Deste modo, já não são dois, mas
uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que
Deus uniu».
Em casa, os discípulos
interrogaram-n’O de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar
com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido
e casar com outro,
comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e
disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas,
não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de
Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus
como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a
abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.
AMBIENTE
Despedindo-se definitivamente da
Galileia, Jesus continua o seu caminho para Jerusalém, ao encontro do seu
destino final. O episódio de hoje situa-nos “na região da Judeia, para além do
Jordão” (vers. 1) – isto é, no território transjordânico da Pereia, território
governado por Herodes Antipas, o mesmo que havia assassinado João Baptista quando
este o criticou por haver abandonado a sua esposa legítima. Aí, Jesus volta a
confrontar-Se com as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos. Os
discípulos, contudo, continuam a rodear Jesus e a beneficiar de uma instrução
especial.
Entram de novo em cena os fariseus,
não para escutar as suas propostas, mas para O experimentar e para Lhe apanhar
uma declaração comprometedora. São esses fanáticos da Lei que vão proporcionar
a Jesus a oportunidade de Se pronunciar sobre uma questão delicada e comprometedora:
o matrimónio e o divórcio.
Tratava-se, na realidade, de uma
questão “quente” e não totalmente consensual nas discussões dos “mestres” de
Israel. A Lei de Israel permitia o divórcio (“quando um homem tomar uma mulher
e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo
de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em
mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1); mas não era totalmente clara acerca
das razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido. Na época
de Jesus, as duas grandes escolas teológicas do tempo divergiam na
interpretação da Lei do divórcio. A escola de Hillel ensinava que qualquer
motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque o marido
gostava mais de outra), servia para o homem despedir a mulher; a escola de
Shammai, mais rigorosa, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a
má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa. A
mulher, por sua vez, era autorizada a obter o divórcio em tribunal somente no
caso de o marido estar afectado pela lepra ou exercer um ofício repugnante.
É nesta discussão de contornos
pouco claros que os fariseus procuram envolver Jesus. Uma resposta negativa por
parte de Jesus seria, certamente, interpretada como uma condenação do
matrimónio de Herodes Antipas com Herodíades, a sua cunhada. A pergunta dos
fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de encontrar razões para
eliminar Jesus.
MENSAGEM
Diante da questão posta pelos
fariseus (“pode um homem repudiar a sua mulher?” – vers. 2), Jesus começa por
recordar-lhes o estado da questão na perspectiva da Lei (“que vos ordenou
Moisés?” – vers. 3). Tal não significa, contudo, que Jesus Se identifique com o
posicionamento da Lei a propósito da questão do divórcio.
Efectivamente, a Lei permite o
divórcio (“Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se
repudiar a mulher” – vers. 4); contudo, essa condescendência da Lei não resulta
do projecto de Deus para o homem e para a mulher, mas é o resultado da “dureza
do coração” dos homens. As prescrições de Moisés não definem o quadro ideal do
amor do homem e da mulher, mas apenas regulam o compromisso matrimonial, tendo
em conta a mediocridade humana.
Em contraste com a permissividade
da Lei, Jesus vai apresentar o projecto primordial de Deus para o amor do homem
e da mulher. Citando livremente Gn 1,27 e Gn 2,24, Jesus explica que, no
projecto original de Deus, o homem e a mulher foram criados um para o outro,
para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o
homem e a mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em
comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com
o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A
separação será sempre o fracasso do amor; não está prevista no projecto ideal
de Deus, pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o
amor eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projecto
primordial de Deus para o homem e para a mulher.
A perspectiva de Jesus acerca da
questão é a seguinte: nessa nova realidade que Deus quer propor ao homem (o
Reino de Deus), chegou o momento de abandonar a facilidade, a mesquinhez, as
meias-tintas e de apontar para um patamar mais alto. Ora, no que diz respeito
ao matrimónio, o patamar mais alto é o projecto inicial de Deus para o homem e
para a mulher, que previa um compromisso de amor estável, duradouro, indissolúvel.
Para os discípulos (que
anteriormente, em diversas situações, tiveram dificuldade em passar da lógica
do mundo para a lógica de Deus), contudo, o discurso de Jesus é difícil de
entender; por isso, quando chegam a casa, pedem a Jesus explicações suplementares
(vers. 10). Jesus reitera que a relação entre o homem e a mulher se deve
enquadrar no projecto inicial de Deus e não nas facilidades concedidas pela Lei
de Moisés. A perspectiva de Deus é que marido e mulher, unidos pelo amor,
formem uma comunidade de vida estável e indissolúvel. O divórcio não entra
nesse projecto. Marido e esposa, em igualdade de circunstâncias, são
responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por evitar o fracasso do
amor (vers. 11-12).
O texto que nos é proposto termina
com uma cena em que Jesus acolhe as crianças, defende-as e abençoa-as (vers.
13-16). As crianças são, aqui, uma espécie de contraponto ao orgulho e
arrogância com que os fariseus se apresentam a Jesus, bem como à dificuldade
que os discípulos revelaram, nas cenas precedentes, para acolher a lógica do
Reino… As crianças são simples, transparentes, sem calculismos; não têm
prestígio ou privilégios a defender; entregam-se confiadamente nos braços do
pai e dele esperam tudo, com amor. Por isso, as crianças são o modelo do
discípulo. O Reino de Deus é daqueles que, como as crianças, vivem com
sinceridade e verdade, sem se preocuparem com a defesa dos seus interesses
egoístas ou dos seus privilégios, acolhendo as propostas de Deus com
simplicidade e amor. Quem não é “criança”, isto é, quem percorre caminhos
tortuosos e calculistas, quem não renuncia ao orgulho e auto-suficiência, quem
despreza a lógica de Deus e só conta com a lógica do mundo (também na questão
do casamento e do divórcio), quem conduz a própria vida ao sabor de interesses
e valores efémeros, quem não aceita questionar os próprios raciocínios e
preconceitos, não pode integrar a comunidade do Reino.
ACTUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo
apresenta-nos o projecto ideal de Deus para o homem e para a mulher que se
amam: eles são convidados a viverem em comunhão total um com o outro, dando-se
um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais
forte do que qualquer outro vínculo. O fracasso dessa relação não está previsto
nesse projecto ideal de Deus. O amor de um homem e de uma mulher que se
comprometem diante de Deus e da sociedade deve ser um amor eterno e
indestrutível, que é reflexo desse amor que Deus tem pelos homens. Este
projecto de Deus não é uma realidade inatingível e impossível: há muitos casais
que, dia a dia, no meio das dificuldades, lutam pelo seu amor e dão testemunho
de um amor eterno e que nada consegue abalar.
• As telenovelas, os valores da
moda, a opinião pública, têm-se esforçado por apresentar o fracasso do amor
como uma realidade normal, banal, que pode acontecer a qualquer instante e que
resolve facilmente as dificuldades que duas pessoas têm em partilhar o seu
projecto de amor. Para os casais cristãos, o fracasso do amor não é uma
normalidade, mas uma situação extrema, uma realidade excepcional. Para os
casais cristãos, o divórcio não deve ser um remédio simples e sempre à mão para
resolver as pequenas dificuldades que a vida todos os dias apresenta. À
partida, o compromisso de amor não deve ser uma realidade efémera, sujeito a
projectos egoístas e a planos superficiais, que terminam quando surgem
dificuldades ou quando um dos dois é confrontado com outras propostas. Para o
casal que quer viver na dinâmica do Reino, a separação não deve ser uma proposta
sempre em cima da mesa. Marido e esposa têm que esforçar-se por realizar a sua
vocação de amor, apesar das dificuldades, das crises, das divergências e dos
problemas que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. A Igreja é chamada a ser
no mundo, mesmo contra a corrente, testemunha do projecto ideal de Deus.
• Apesar de tudo, a vida dos homens
e das mulheres é marcada pela debilidade própria da condição humana. Nem sempre
as pessoas, apesar do seu esforço e da sua boa vontade, conseguem ser fiéis aos
ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos, de
infidelidades, de falhas. Nessas circunstâncias, a comunidade cristã deve usar
de muita compreensão para aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na
vivência do seu projecto de amor. Em nenhuma circunstância as pessoas
divorciadas devem ser marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã.
A comunidade deve, em todos os instantes, acolher, integrar, compreender,
ajudar aqueles a quem as circunstâncias da vida impediram de viver o tal
projecto ideal de Deus. Não se trata de renunciar ao “ideal” que Deus propõe;
trata-se de testemunhar a bondade e a misericórdia de Deus para com todos
aqueles a quem a partilha de um projecto comum fez sofrer e que, por diversas
razões, não puderam realizar esse ideal que um dia, diante de Deus e da
comunidade, se comprometeram a viver.
• As crianças que Jesus nos
apresenta no Evangelho deste domingo como modelos do discípulo convidam-nos à
simplicidade, à humildade, à sinceridade, ao acolhimento humilde dos dons de
Deus. De acordo com as palavras de Jesus, não pode integrar o Reino quem se
coloca numa atitude de orgulho, de auto-suficiência, de autoritarismo, de
superioridade sobre os irmãos. A dinâmica do Reino exige pessoas dispostas a
acolher e a escutar as propostas de Deus e dispostas a servir os irmãos com
humildade e simplicidade.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O
27º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes
d’aujourd’hui”)
1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA
SEMANA.
Ao longo dos dias da semana
anterior ao 27º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus
deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo…
Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da
paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa
comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a
Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Quando Jesus pressente que Lhe
querem estender uma armadilha, Ele refere-se à vontade de seu Pai. Ora, Deus
tem um projecto que submete ao homem, e este, porque foi criado livre, realiza
este projecto ou recusa-o. O mais belo projecto de Deus é o homem, a sua
criatura. Como Ele o criou à sua imagem, fê-lo como ser de relação. É por isso
que Ele cria a humanidade, homem e mulher, e a sua comunhão significa algo de
Deus que em si mesmo é comunhão. O que conta numa obra artística não são
primeiramente as interpretações ou os comentários que são feitos, mas a
intenção do autor. Face ao amor do homem e da mulher, não comecemos por olhar
como é vivida hoje a relação, mas contemplemos o sonho de Deus e tenhamos sobre
os casais o olhar de Deus, que vê que aquilo que Ele fez é bom ou que oferece a
sua misericórdia àqueles que não puderam ou não quiseram interpretar o seu
projecto.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Não separe o homem o que Deus
uniu…” Jesus coloca o dedo na ferida… O divórcio é sempre um fracasso, um
sofrimento. Mas entrou nos costumes como uma realidade normal, um “direito”!
Jesus está contra a corrente… Palavra incompreensível para muitos homens e
mulheres, qualquer que seja a sua idade! Na sua resposta aos fariseus, Jesus
recorre a um critério a que geralmente se presta pouca atenção. Vai ao
“princípio da criação”, à vontade primeira, à vontade criadora de Deus. Ora,
esta vontade é que os seres humanos se tornem “imagens de Deus”, na medida em
que aceitem entrar uns e outros nas relações de amor recíproco, porque Ele,
Deus, é eterno movimento de amor no seu Ser mais profundo. O casal humano,
antes mesmo da questão da procriação, é chamado por Deus a tornar-se o primeiro
lugar de incarnação deste movimento de amor. O amor humano, sob todas as suas
formas, não nasceu dos acasos da evolução biológica. É dom de Deus. Quando os
homens recusam este dom, impedem Deus de imprimir neles a sua imagem. Na
realidade, vão contra a vontade criadora, introduzem uma desordem na criação
tal como Deus a quis. Porque Ele escuta plenamente o seu Pai e acolhe sem
quaisquer reticências nem recusas a vontade de amor do seu Pai, Jesus, e apenas
Ele, pode colocar-nos na luz de Deus Criador e da sua vontade criadora. Mas
isso supõe que aceitemos escutar Jesus, tomar Jesus na nossa vida. Só poderemos
compreender a exigência de unidade e de fidelidade no amor humano se aceitarmos
tornar-nos, dia após dia, discípulos, mais ainda, amigos de Jesus. Para
resolver os nossos problemas afectivos, temos razão em recorrer à psicologia, à
psicoterapia do casal. Mas isso não basta. A verdadeira falta é uma falta de
profundidade espiritual. Não servirá de nada a Igreja repetir sem cessar a sua
oposição ao divórcio se, primeiro, não fizer imensos esforços para ajudar a
redescobrir um verdadeiro acompanhamento com Jesus, revelador do amor do Pai.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Que o Senhor te abençoe… Como seria
belo, em cada manhã desta semana, dizer-se bom dia, em família, com as simples
palavras do salmista: “Que o Senhor te abençoe…” Fórmula de bênção, em que se
deseja apenas o bem. Ultrapassemos qualquer falso pudor, para oferecermos
àqueles que amamos a bênção do Senhor.
FONTE:
PROPRIEDADE:
UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA
ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E
ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
Grupo Dinamizador:
P. Joaquim Garrido, P. Manuel
Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
Província Portuguesa dos Sacerdotes
do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129
LISBOA – Portugal
Tel. 218540900 – Fax: 218540909
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